Paisagem Doméstica
Massao Ohno, 1984
Biobibliografia precoce
Fui aprender linguística para entender as palavras
ensinei semântica ao acreditar que tudo tem sentido
escrevi livros sobre a linguagem buscando não perder
as farpas das circunstâncias
traduzi textos de hermética lógica e mitológicas
depois de viajar por binarismos e termos médios
sem deixar de girar por gerações de frases bobas
volto ao ponto de que partia:
vejo-me gramaticalmente indecifrável
diante da técnica da poesia
Fábula rábula
Era uma vez um país
num círculo vicioso
onde brilhavam estrelas
dobradas em seu fulgor
e o vagalume invejoso
sabia que o presidente
sonhava com um ditador
Poeminha cafajeste
Quem tem nome
deita
rola
e come
quem não tem
faz tudo isso
e some
Graffitto
Nada mais social
que órgão genital
Volta ao lar
Saio mais cedo do escritório
aumentam-me as chances de esperar na fila
tudo o que eu quero desta tarde fria
no ônibus cheio e cansado
que passa pela Freguesia
é ter um lugar sentado
hoje eu vou na janela
seja por bem ou por mal
olhar a noite caindo
enquanto leio o jornal
primeiro os classificados
compro vendo alugo
procuro um rouxinol
os anúncios de emprego distraem o trânsito
emperrado na política nacional
Cruz das Almas está longe
mais perto
o futebol
nas ruas pessoas lojas apitos buzinas e luzes
apressam-me para a família
de onde vejo a cidade viajo lento e contente
desprezo no meu conforto
a sensação que se infiltra
no ônibus por toda parte de pertencer
como os outros
à mesma ruína do dia
escolho na página mappin na jumbo
depois na mesbla
artigos inúteis de oferta
na ponte com a marginal
cresce no banco o vizinho
estica o pescoço
disfarça
reparte comigo o jornal
como fugir às investidas de um chato
talvez com um cutucão
seguido de minhas desculpas
só que o parceiro do lado
é grande forte
encarado
meto o jornal entre as pernas
como é que eu vou me arrumar
sem ter lido as efemérides
tampouco as policiais
gasto na sombra da tarde
a fama da noite no bar
agora já não tem jeito
está escuro demais
as mãos se cruzam no peito
cochilo
pende a cabeça reclina
na coluna dos editoriais
Poética também
O poema é feito
de folhas inúteis
Paisagem doméstica
Desavenças de casos
secam avencas
nos vasos
Adamastor
O gigante que passar tem a boca torta
pássaros pescadores emigram de seu nariz
na sala
homens estão sentados e olham
vasos de guerra arrebentar a manhã
nas costas de sua dor
Epígrafe para o cotidiano
Anômalo
como os anos:
anônimo
Decreto
A vida
– como o contrário –
não pode ser impedimento
para viver
salvo
disposições em contrato
Hai-kai (falso) da preguiça
Duro mesmo
é ouvir o pão
estalar as manhãs
Natureza morta
Na clara tarde
o firmamento
firme
na sala a flora
deflorada
em plástico
no quarto
corpos
em colchões de cal
Caeiro revisitado (depois do 25 de abril)
Eu nunca guardei rebanhos
entre outras coisas
porque
nunca os tive
que guardasse
Acordo político
Ou acordamos agora
ou
desacordamos depois
Aporia
Apodítico: ápode
acéfalo
São Paulo
Agora são bandas
no quartel de abrantes
quem antes bandeiras
depois bandeirantes
Proporções
O ético está para o êmico
e o polêmico está para o cético
assim como o político está para
o cênico
Sanduíche dialético
Entre a corrupção e a virtude
espreme-se
a virtude e a democracia
Galera
Apesar do trocadilho
torço
pelos pares trocados
Conselho de pecuária política
Quem quiser bode expiatório
crie cabras
Do diário de um machista
Paquete de mulher pra frente
é
piquete
Porto epitáfio
Se o de que vive o mundo são mudanças
não há esperança que não traia
o fruto mudado em folhas
a folha trocada em falhas
Falso provérbio no parachoque falto de um farto caminhão
Ouro
é o que o desdouro
doura
Soneto da esterilidade
A reticente dor de confessar-me
estar segura minha mão escapa
em gestos largos de ranhura e escarpa
o sangue rouco arregaçando a carne
por mágoa sem remédio de calar-me
se quantos naufragaram nessa mata
a casa era vazia: tédio e nada
previa na certeza o falso alarme
ressoa na clareira um grito agudo
são bruxas minotauros sentinelas
que enxotam competentes o absurdo
esgarçam duras peles folhas velhas
moldura quadro seco fruto mudo
retórica dos braços nas janelas
sentado na beira da cama
herói de falsos perigos
converso com as feras saudades
que o copo de uísque reclama
passo por garras impune
mas vejo deitar-se na noite
a mão de um menino ferido
além de ferida
guardada
em redonda insuficiência
a mão na noite deitada
é o tempo datado em silêncio
serena como num ovo
em águas de estagnação
a noite na mão do menino
dobrada em anzol de cristal
é ponto de interrogação:
torto para diferenças
só fisga em soluços constantes
a mesma história banal
Arqueologia
Com um silêncio alugado
feito de poros e arcos
instala-se a noite versada
nas manhãs da solidão
é uma noite alongada
terna de furos e arestas
contida não no ser antes
tampouco no ser porém
ir sendo aquilo que resta
noite enjaulada em macacos
bichos no sótão
– balança –
o tempo pendido na cauda
do bicho preguiça que avança
Brevidade
O tempo é breve
para consumi-lo
séculos de consumação
Mal-du-siècle
Que esperanças terá
o homem lírico
o poeta físico
o físico tísico?
Segunda lição de geometria
Deontológico
Espanta-me o tempo
no compromisso que ele tem comigo:
em mim
no tempo
a obrigação do espanto
o que há de ser perdido
Produto perecível
Aqui & agora
intervalo de provisoriedade
único definitivo disponível
Tautologia
para Carlos Rodrigues Brandão
Feito de ausências
no contato último do corpo que as queima
e destila
o poema carrega entre aspas as coisas
que estão entre palavras
palavras coisas poema escorrem no tempo
que corre no inverno
do dizer que é longo
o mostrar que é curto
o tempo
animal ferido mas vingativo
nega no próprio destino a consumação vegetal
do fato:
apodrecer num prato
o intestino das palavras
(sendo as coisas fora de si)
recobre a pele das formas
(sendo as palavras dentro de mim)
todas as coisas comungam no ponto de modificar-se
estáticas
na ogiva inchada das promessas de explosão
os limites de qualquer mudança
dados pelas fronteiras desta imobilidade
ancestral e futura:
a da morte
por isso tudo está em tudo como cada coisa
em si mesma
caminha para a recusa dessa objetivação
simplificadora
recuos e projeções atualizam-se em diferenças simultâneas
no homem
estando em seu corpo na forma do outro
dosada no tempo das coisas na história
a palavra é o outro do homem nas coisas
o poema é atento às coisas no tempo
e o tempo é o tempo é o tempo é o tempo
Bordado
Ponto por ponto tece em cruz o bordado
a voz que espalha no cânhamo
as cercas de um mundo encantado
costura a casa na tarde
o príncipe dentro da fera
a fera dentro da noite
a noite dentro da espera
Fingimento
Quando a árvore finge tempestade
e o mar revolto sombra de ser ilha
o artista plácido afia sua vontade
na folha em branco geme a calmaria
…Ergo cogito
Penso
(não com a certeza da águia
ao desferir o mergulho fatal sobre a presa)
apenas penso
(com a dívida do preso)
ao ser mergulhado pela contabilidade social do tempo)
Máscaras
A inspiração solitária
cheia de ânsias
o poema solidário
rio de farpas
a primeira fala de si e tudo
o segundo diz o que conta e nada
à margem
mostra-se dentro
o outro
forma de fora
Fabulário sintético para computadores
Era uma vez um menino
era um menino e uma rês
depois o menino era um homem
seja um menino e dois réus
era uma vez um menino
era uma estrela e três reis
Jogos frugais
O verso
foice
de falhas
o poeta
fuça
na sala
o poema
malhas
de máscara
o poeta
masca
salada
a poesia
face
de folhas
o poeta
fosse
de métricas
o reverso
folhas
de alface
O copista
O calígrafo afia as penas de sua escrita
para o exercício cotidiano dos grafismos
são velhos livros que lhe servem de modelo
histórias velhas de príncipes batalhas e desditas
mouros e cristãos trucidam-se com zelo
Artur Genebra Lancelot e o puro Galaaz em seus abismos
nas cópias enredadas de traçados
as letras e os sentidos estão em liça
confundem-se os heróis do imediato
com o jogo de paciência do calígrafo
os riscos de contornos mais que finos
desenham o sonho louco de um califa
Etiqueta
A sociedade distribui papéis
os homens também à sociedade
ciosa a natureza
(muda às vezes outras não)
sufoca primaveras
em cios secos de verão
Autópsia
à maneira de Antero
Augusto
e outros anjos
realistas
Tiro-me a roupa
a carteira
os documentos
rasgo-me o peito
o ventre
os sentimentos
abro-me a pele
em frestas
para o avesso
devassa inútil:
dentro
por sobre a mesa
sólida
verte-se em sangue
só
cheia de dor
a mesma subjetividade
episódica
Identidade
Um homem tem muitas mortes:
aquela que irá morrer porque nasce
aquela que matará o seu batismo
ou o simples nome que lhe é atribuído
enfim todas aquelas em que morrerão
as máscaras sociais
com que foi sendo vestida sua vida
Módulo para duplos
No espelho
a imagem
do corpo
no corpo
o espelho
do outro
no outro
a sombra
do velho
no velho
o moço
do morto
Dos elementos
1. Engenho
Água é
a arte de aprender
orifícios
terra é
ofício
de não ser água
2. Arte
Fogo é amor
que arde em grito
bêbado
ar é claro
e chamas
de segredo
Geração
Arrancam-me o silêncio como se arrancassem
paralelepípedos da rua
sabem
como
não sei
que este é meu único
último segredo
aquele trazido úmido do ventre verde
de imemoriais montanhas
querem me fazer gritar
mostrar
não fosse já interjeição
falar
por derradeira frase alada
dizer
meu silêncio
vibra em choques meu corpo
escorrega
em lamacentas correntes de delírio
pedras
arrastando a consciência mutilada
do perigo
não podem porque não posso
é o que me resta de todas as bravatas heróicas
de todos os futuros que suportaram tédios
passados
a ferro
e esperança
há intervalos
deixam então meu corpo
? este fardo inútil de delação ?
atirado ao canto surdo de suas feridas
virão mais tarde daqui a pouco
e tudo recomeçará
aprenderam comigo que a expectativa da dor
é sofrimento maior que a dor presente
por isso me deixam abandonado
ao fantasma de minha obstinação
alongam o silêncio que os trará de volta
como feras saltando a escuridão
é um silêncio instrumento
feito de vozes ao longe
de passos ecos no corredor
é um silêncio alfinete
cheio de portas batendo
não o silêncio batente
não o silêncio segredo
tampouco o silêncio reposta
nem o silêncio silêncio
mas o silêncio medo
não há mais expedientes quase
sobram alguns como o me pensar criança
e ir refazendo em detalhes uma história
fantástica
na qual a vida tivesse outro curso
e meu corpo jovem com a sua própria idade
derivasse ao largo:
barco intangível de confrontos
consigo ainda recolher-me as chagas
sinto devagar ir remontando a fruta
falham-me os casos é verdade e mais
só o que resulta
ao recascar a luta
é uma fruteira onde se esquece
a tenra pele de uma pedra madura
não desisto
deixo-me acompanhar este repouso de pedra
na correnteza de um rio
cascalho na corrente de um córrego
pedra pontuda que as águas vão arredondando
à força de passar
o tempo
pedra sem flechas
pedra amolada no fio das águas
pedra
quando batem à minha porta
? meus deus eu já disse minha ?
sei quem é: o carcereiro de minhas lembranças
cuja função
além de guardar-me como bem compete
à sua atividade
é cercar a pauladas
a insolência de meu pensamento
que pode acaso vazar de sua contensão
as paredes nos garantem um do outro
é pouco
tanto quanto me obstino a ficar mudo
menos muda sua obsessão
o ritmo das pancadas
as mãos os pés alternam-se com freqüência
a interposta porta vive de nuanças:
não fecha mais do que ameaça
abre-se entanto para se lembrar fechada
é minha porta porque dela fui despossuído
faltam-me chave fechadura trinco
tranco-me a ela como a um sortilégio
tenho um instante uma ilusão de frestas
ao invés de preso vejo-me defendido
alguma vez resiste em mim
o que me levou ao ponto
procuro aí socializar o fato
dificilmente evito nessas ocasiões
o ver-me herói desta experiência
contada em goles em qualquer bar da moda
sofro recuos
um passo em falso será o abismo
vertigem da palavra e tudo estará perdido
agarro-me
pronto a precipitar o discurso
à curvatura de meu corpo encolhido:
a força que me desdobra no tempo
é menor que a dor que reflui em silêncio
nunca sei ao certo quando voltarão
mas voltam sempre
quando estou dormindo
talvez para me surpreender no inconsciente
a história que lhes recuso
acordo com a presença pesada de pés
ao lado de minha cabeça
imóveis à espera de minha rendição
subo penosamente os olhos pelas suas pernas
ventre peito
no topo de meu esforço
sacos negros escondem suas caras
quantos são?
muitos
se descarnados no entusiasmo da tortura
poucos
quando adoçados de investidas retóricas
complacentes
ou serei eu o encapuzado?
senão de onde virá esta dificuldade em respirar
esta noite imperiosa e quente
que me abraça no silêncio frio do cimento
como uma auréola azeda
uma coroa de vômitos
um ruído seco de mastigação
apodrecendo os dentes?
o que virá em seguida
é uma cena cuja marcação falas e deixas
conheço de cor
meu corpo
tocado pelo bico das botas
se fechará primeiro perto do impossível
até que
ao ritmo frenético de pontapés e injúrias
se abra todo num despregamento roto
de gritos e gemidos
acho que não se importam mais
com o risco de minha morte
menos ainda com a possibilidade
cada dia mais remota
de eu sair e exibir em jornais televisão
em praça pública
as marcas de sua
minha
punição
sentem-se impunes no seu desvario noturno
sabem
também eu
que não sairei
há contudo um equívoco neste saber repartido
escavam o meu silêncio
e o tratam como se fosse
uma disciplina aprendida
que é preciso romper
fazendo saltar do grito o nó da voz escondida
desmontam-me como um programa didático
de resistência
pretendem chegar ao centro da força
que me determina
embrulham-me o sofrimento em folha de jornal
usado
em página lida e relida
mas meu corpo devastado é ainda meu corpo
silêncio
nele
tudo o que existe
é a solitária vitória de que serei exilado
na morte que o cristaliza
um tiro sem bala abafado
uma justificativa de vida