Metalurgia
Companhia das Letras, 1981
Dedicatória
Para quem depois de agora
virá poupar o ágio do tempo
e as juras de não ir embora.
Metalurgia
para João Baptista
Ponho a palavra em estado de gramatical ofensa,
no torno retalho suas redondezas,
desgasto obsessivo com a broca da caneta
o que há de angular e mole na sentença.
Fora, uma forma enxuta, dentro, amor de sequidões,
ovo sozinho sem nenhum conceito a circundar-lhe a norma
de ser só ovo, sêmen contido, casca de memória.
Fazer abrasivo:
a lima, a lixa, a mão desgastam por extornos
a rixa com o verso, a rima com o avesso;
no chão, limalhas, matéria de contornos;
na página, o poema:
liso, úmido, duro como gelo.
O domador de sonhos
Quem monta um potro bravo numa tarde calma
não pode nunca apear das nuvens de seus sonhos.
A Ars magna é uma arte grande, breve e cálida:
consiste em domar livros de bestas,
cavalgar indômito corcovas de lesmas,
correr palmo a palmo o vôo inicial da borboleta,
matar no ovo o sonho de vida da crisálida.
Afresco
No banco de jardim
da praça Santa Rita de Cássia
em Sales Oliveira
sentados meu pai e eu
– ambos ausentes: um pela morte
outro pela vida –
resolvemos lembrar
as velhas sombras
que abrigam
os esquecidos
Manual do novo peregrino
para Nelson Brissac Peixoto
Nunca mais construir a imitação da excedência da luz,
nunca, digo, não por vontade de indivíduo pleno ou por
ensejo,
antes por imposição de pessoa, pacto de imagens,
planificado e plano,
este que transforma um guarda-roupa de subjetividades
num ícone errante de dor, angústia, programa de saudades.
Nunca mais o cão alarido atrás de grades familiares,
solo de andarilhos, pose de esfinges, solidão de bares,
nesses de gravuras que vendem fórmulas prontas de
dramas finos,
esses que se fazem das mãos cheias de despojos,
como museus de bobagens nos bolsos de meninos:
pedra de bugalho, guimba de cigarro, luz de vaga-lume,
canto de cigarra, entulho de desejos.
Posturas, pois, sem erros e atropelos, ali no lugar devido,
como um navio atracado ameaça navegar o cais,
salão em que o mocinho se encontra com o bandido,
e os dois são únicos no mesmo enredo, são um e muitos
em muitas capitais.
Se já não há perguntas com respostas para a embriaguez
das circunstâncias,
por simplicidade de método, para encurtar o não,
resumo o programa em que se fundem a linguagem com
o outro, a imgem com o chão:
agarrar a tolice, como o samurai a mosca, com a espada
da bebida,
trocar o aéreo pelo sóbrio, a chama pelo jogo, a sombra
pelo líqüido,
ser paciente e boi, nos olhos, no cansaço, nas faltas e
abundâncias,
ruminar detalhe por detalhe, grama por grama, areia por
estrela, símbolo por ação,
desconstruir o sonho pela vida, a vida pelo enigma, o enigma
pelo óbvio,
ser banal e bobo na banalidade de ser um e múltiplo, mas
não ser ubíquo,
resistir heróica e inutilmente à utilidade da palavra,
como pássaro se perde de si próprio no canto solitário que
a gaiola agrava.
Nunca mais o estilo decidido, nunca mais a ilusão do real
pelo real,
tampouco a explosão semântica do símbolo cindido,
no modo ambíguo de falar de si para esconder-se mais;
agora não será preciso correr com o espelho sobre o objeto
mudo,
no movimento vão de armazenar o mundo,
de construir represas para conter os furos,
de fabricar armários de guardar cascalhos;
não penetrar paisagens pela dimensão da profundidade que
elas não têm,
ser lateral e plano na exclamação cruzada de suas
molduras,
ficar parado e móvel nas ruínas de cenários como um
cenário em ruínas,
habitar a interface do mundo com o muro,
ver e estar sendo visto: janela de néon, poltrona de
vacâncias, moinho de securas.
Desejo
Arde uma estrela
cadente,
a solidão simultânea incendeia
o instantâneo.
Dramaturgia
Não me sinto bem
no papel
vivido por você
Ritual
O tempo da informação, sem densidade,
o espaço da imagem, sem perspectiva,
o símbolo bêbado como aguardente idoso,
o plano ermo, o pão em dúvida, a vida viva.
O esforço cotidiano para ver no espelho
o perfil do erro, o resto do acerto, o rosto do chão,
o real que apalpa no sujeito o desejo do objeto,
a ponte em que a solidão se liga com o acidente
de ser velho e estável como um bom projeto,
como o projeto bobo de ser mesquinho e generoso,
de ser igual e simples como toda gente,
no natal ser novo e de novo novo no ano-bom.
Labirinto
Marcel Schwob, citado por Borges, inventou vidas
e escreveu biografias imaginárias de homens reais;
Borges, do outro lado do espelho, inventou caprichos
e reescreveu biografias reais de homens imaginários.
No sonho alheio de ser sonhado, enquanto sonha,
o escritor afina imagens no abismo de suas multiplicações;
o leitor – o outro que é forma do texto – guarda-se
em entrelinhas
aguarda outro leitor de carne, osso, ficção e história
que abra um dia, mesmo por acaso, o mesmo livro
e encontre na dura pena de tê-lo escrito
a pálida, edificante e triste luz de que é feita a persistente
beleza da memória.
Nada, então, terá mais o tamanho de sua própria altura,
nada medirá em si ou pelo outro a extensão de sua
diferença:
espadas, tigres, reis, vassalos e campeadores
virão dilacerar a densidade conceitual do único,
e a novidade ? monástica no hábito de ser estrada e tensa
fingirá combates cinematográficos de guerras púnicas.
Juntos escrevemos roteiros errantes por aridez de Espanhas
e a vida repetirá a arte, só pelo prazer da ilusão
de ser parte
da boa vontade de deuses nus, entremostrados em longas
vestes leves,
discretos no tédio alado de inventar nas tardes sépia
jogos eletrônicos banais e atrevidos de criação.
Água
Pôr em suas mãos, no gesto, o copo agora ali sobre a cristaleira
guarda outros copos, porém vazios da contida água no primeiro copo;
nele deposita com o desejo de bebê-la a sede
senão de vinho, da vinha torrencial de continentes líquidos,
não os amarrados em formas de transparente solidão,
só aqueles solitários na opaca transparência de muros sem
razão.
Água ausente, distante, mas inequívoca água
como bois rumina o tempo de estar ali parada
à espera que a mão, o movimento, a boca
deformem o conteúdo de sua estagnada e pronta chuva.
Água mais memória de ter sido água
água-boi, água-quase, quase-queda, queda-d’água
sem rochedos, pedras, precipícios,
água, talvez dissesse, ali encerrada como em pasto estreito,
ou melhor pensada no instantâneo de um princípio:
parte de alguma totalidade fluida cuja compreensão
compreende a suposição da parte;
totalidade embora, mesmo que em si mesma desconstruída
em partes, não leva já a parte alguma.
Água, como diria, condenada ao copo e destinada ao corpo,
água vista agora na transparência quieta da fusão de
materiais estranhos,
água sendo copo, conforma o corpo do que não é mais
água
e tem do boi o mesmo olhar de gelatina e opaco brilho;
água com sede do outro quer ser água e não recusa continuar
ser vidro,
água imóvel como cristais correntes
copos vazios cheios de alusões aquáticas
água pois, ali parada, água-palavra a endurecer no copo,
copo de fala amolecido e pronto a derramar-se em cursos.
Bichos da noite
Um dia – era noite – eu disse para duas moças velhas
sentadas num alpendre de jardim:
– Cuidado com os curiangos !
Elas em uníssono responderam:
– Não sabemos o que é curiango,
mas não fale conosco assim.
Sofisma
O tempo nos perderá a todos!
Não que isto seja uma verdade comum
a todas as idades,
mas que nos perderemos no tempo,
isso é verdade.
Medidas
o raso / o fundo
o fundo raso / o raso fundo
o mundo bobo / o raso bravo
o fundo / o fundo
Proverbial
O silêncio é de moscas ausentes,
completo, geral, irrestrito,
por isso, de ouro,
quebrado apenas pelo atrito
com o silêncio do outro.
Otimismo
Nós dois jamais fracassamos juntos
sempre apostamos no certo
na hora errada
chegamos perto
Citação
Antes e depois de acertos
sombra de imagens
a vida plana
areal de excertos
Rio Grande
Aqui, aquém, agora deste rio caudaloso de insignificâncias,
deposito a espada de criança.
Aqui, onde se agitam emblemas fortalecidos e sujos
do sangue dos combates duros,
aqui deposito a hora, o cavalo de pau, a armadura de minhas lembranças.
Aqui, neste rio que não lembra o Tejo
e que não é maior que o rio que passa pela minha aldeia,
neste rio feito de imagem, celulóide, projeção e luz,
rio de batalhas memoráveis pelos feitos heróicos de generais
quiméricos,
divisor conspícuo de províncias convictas,
águas virgens de realidade
rios de bêbados em barcos sérios.
Aqui, como se conta, quase por nada
naufrágios rasos obstruíram o curso de históricas descobertas,
meninos proibidos de assistir ao filme impróprio
tomaram de assalto na noite erma o alçapão do assoalho
por trás da tela, na popa da aventura extrema,
fizeram correr, com a cena nua da atriz francesa d’A chicotada,
rios infantes de esperma.
Rio Grande, não destes de fronteiras territoriais,
este de Minas e São Paulo, entre Igarapava e Minas Gerais,
tampouco o que corria caudaloso no cine Santa Rita,
aquele que não dividia Sales de Oliveira de Orlândia
mas separava bandidos e mocinhos,
a linha de cima e a linha de baixo pelos trilhos da Mogiana
e, pelo mesmo leito seco de máquinas, passageiros, comboios e
litorinas,
heróis e mexicanos, os Estados Unidos e o México,
o México da Hispano-América
o Brasil da América Latina
São Paulo das treze listas
Sales de nunca mais.
Rio Grande, contudo,
feito das erosões da infância,
dos cursos caudalosos das enchentes de março
e dos outros meses anônimos em que houve cheias.
Rio teimoso
como o poema, às vezes, corre do mar para a terra
e na terra se embrenha
claro, poluído, claro
contraste de vida e de morte,
rio corrente, rio parado, rio de beleza feia.
Rio onde nunca vi boi morto nem outro cão emplumado,
rio que não corre da serra nem para ela se oferece,
rio em cinemascope, branco e preto, rio em cores,
águas prenhes do espanto da fruta que amadurece,
rio que vi com meu pai na roda dos pescadores
no bar do seu Armando.
Rio sem águas, rio de temas,
rio do não retorno,
roteiro de minhas noites,
eu menino,
eu meu pai, meu pai menino
córrego de interiores
curso de cinemas
rio de morros.
Jardins
Em frente à minha casa tem um pequeno jardim de rosas;
é o jardim da casa, mas antes o jardim de meu velho pai,
e sendo dele, porque ele o fez com zelo,
tem em cada flor a nostalgia de suas mãos de pai e de
artesão.
No que me cabe é meu, por ser da casa,
que por ser minha na circunstância casual da posse e da
ansiedade,
me deixa estar ali sentado nessa varanda de luz, ocaso e
generosidade
a ruminarmos juntos e desdentados ? velho um, outro
criança ?
a lembrança neutra de vegetais no vaso.
O Natal do poema
Como para escrever,
a preparação de muitas exigências
a caneta preferida, o papel sulfite
quadriculado,
o susto do improviso, o aviso prévio do namoro antigo,
a velha Remington, o micro de contrabando,
a generosidade do poema, o ridículo do achado,
a tatibitate da dor e da alegria,
o sonho de menina,
o MacIntosch, o japonês, o coreano, o alemão, o
americano,
o nacional mais caro,
a novidade do dia, o mistério da noite,
a estrela peregrina,
o universo fraco, imponente como uma efeméride,
o presépio de mitos, musgos e contingências,
um ritual solitário de peças simples, complexas, triviais
e rugas.
O fato é que ninguém escreve em bando,
escreve-se para alguém,
um escrever de gente, chuva, sol e artifício,
escreve-se por encomendas, sob inspiração, liberdade, ouro
e bobagem,
escreve-se para o outro,
sempre sem ninguém ao lado.
Cartão-postal
A lâmina e o corte
o poeta e o coreto
a flecha e o arco
a moeda e a pinça
a terra e o azul
o retrato e o soneto
a margem e o barco
a capital e a província
da dor na alegria
da alegria na dor
um lado são muitos
e muitos são poucos
os que passam impunes
a cidade desnuda
um ponto no outro
o avesso no verso
o norte no sul
a infância nos une
nos perde a infâmia
nas cidades da infância
o azul contra o verde
no olhar contra o vale
o desejo das asas
nas manhãs de Madrid
os segredos das arcas
nas arestas dos trípticos
a paixão rotineira
em São Paulo Campinas
em Tiradentes São João
o oco do outro
na cópia por fax
os bêbados líricos
no urutu de si mesmo
o lar e a viagem
nos cabelos de mechas
a Mojiana em Paris
Saint-André no ABC
na lição de poesia
os baldios do Texas
no chapado da tela
os vazios de Sales
Mínima
Iguais em tudo:
a mesma morte que o fez viúvo
a ela levou de branco
a ele deixou de luto.
Máxima
Quem se perde acima da expectativa
abaixo
desce com os pedestais nas mãos
Máxima mínima
Os machos são homistas.
Homens e mulheres são
o que são nas vagas
horistas.
Ameaça da massa
Vocês vão ver com quantos
pães
se faz uma patroa
Presenças de Vinícius
De tudo à tua ausência, por seres um e múltiplo serei
atento
antes, e com tal zelo, e sempre e tanto
que, se te espedaças em vão contra o infinito,
recolhem-se os fragmentos no teu canto
que sempre se inicia e é sempre último.
Por seres, pois, quem me foste um dia,
sombra e luz, azul e branco, carnaval e cinzas,
sugestão de amor, verbo, saciedade e fome,
de repente se me afigura o verso, o samba, a namorada,
o bar,
em que sentado à mesa em boa companhia,
conheci o poeta sem jamais ter visto o homem:
o homem com seus sonhos de quem invejo os pares
inveja dos seus deuses de quem desejo as ninfas.
Na roda de cerveja, entre amigos e dilemas,
como um Castro Alves na província ardente de seu
coração,
recitei retórico a sina do operário
que erguendo a casa de sua liberdade
construía alheia a própria escravidão;
cantei o amor que tive e que não tive
(e por isso dura)
e porque era sábado
ali me apaixonei pela mulher distante,
leve e etérea como uma estrela longe,
feita não só do mangue de carências longas
e amarguras
mas da pureza vaga e sensual do sangue dos poemas.
Ponto de vista
Visto da ilha
o continente no container dos olhos
represa mágoas e metáforas de alegria.
Na distância de água e argila,
visto da ilha,
o continente é outra ilha.
Obsessão
Outra vez o poema sonâmbulo
o sonho do poeta outra vez
agora perto
os pés
não a forma
a mesma
ardente lisa fugida pronta:
um ângulo reto
uma estrela de sombras
um poema ao revés.
Lance de dados
Na manhã iluminada de lembranças refila a cor do
sentimento
o amor é novo alegre velho triste generoso como deveria
ser
o homem que sabe que o destino e seu caráter
são peças da mesma jogada imperativa de paciência no
xadrez.
Contrato social
Nessa terra em que se plantando tudo dá
nasce uma fruta árida e harmônica
misto de bom crioulo e palha de pamonha
organização de homens só de bem
com os que estão de mal entre si com os outros.
Salada completa
A solidão, meu caro Carlos, é um hábito de desterros,
é roupa que se veste por acaso e jamais se desveste por
prazer,
é um costume de touros e corujas aposentadas;
embora dele fuja o amigo, o namorado, a mulher, o filho,
o marido desencantado,
é coleira de cão em pescoço de tigre desiludido,
é dor que afina com soneto e mói e mói palavras com pi-
menta sal azeite e destempero.
Primavera
O jardim
está cheio de passarinhos
os passarinhos não vivem
no jardim
mas o jardim
está cheio de passarinhos
A edificação do ódio
Galgar dedo a dedo a prosa dos livros sagrados,
reunir em torno do tédio os bons companheiros,
salgar as chuvas de verão, com a voz da maledicência,
descer ao fundo da jóia para provar da família imensa o
pão azedo.
Ausentar-se de si mesmo na hora do pró, no cargo pré,
na força contra, no modo impróprio, no contrapé,
ser lúcido no abdômen dos compromissos fictícios,
arremeter com violência insana a favor da paz celestial,
escrachar o interlocutor qualificado pelo vício do
ventríloquo,
ferir de vida a chaga hipócrita da militância dos omissos.
Mover-se rápido da tarde ao cedo, do pó ao pó, do ódio
ao pódio,
do amor ao medo,
selecionar os piores poemas de insuspeita beleza,
tornear cada som, pausa, cada imagem, metro, rima,
ritmo, código,
cada verso
com a precisão informática da ferramenta de escalpo,
não progredir jamais pelas linhas tortas do incerto sucesso,
colecionar palavras maduras como cabeças encolhidas no
fel da saudade,
ser touro sentado no trono manchado de sangue do
instante adverso,
voltar a rever o já-visto, o novo e o desconhecido da velha
cidade,
saber quebrar a espinha tensa do grito que abafe
o poema do herói caçador, a heróica caçada sedenta do
poeta do amor.
Ser ardente e oblíquo na acareação dos espelhos,
viver na interface de imagens de costa para o aço,
de cócoras para o mal,
cortar com lâmina agrura a retórica dos pêlos,
chegar finalmente ao meio da encosta de igual desespero
plausível, timorato e temido como a ilusão do real.
Escrever com o contrário do hábito para aprender o
improviso
do resto da música bossa que o ócio do esmero
aumenta em risco rasgando o requinte do gesto,
metáfora que engessa a boca do tempo emergente,
o boi solitário que muge a urgência do sal.
E se um dia, como de fato ocorre, no caminho surge
a pedra do poema, a poesia de pedra do poeta maestro que
se finge
arquiteto,
um dia, pois, que costuma ser noite por acaso ou
circunstância,
bastará ser menino e ser velho sem nenhuma aliança,
trapezista da sorte, amolador de vinganças,
atar os extremos do sóbrio à clausura dos berros,
matar-se de amor pelo ódio, por um ou por outro
morrer-se de amor.
Festejos
Outra vez o natal
o ano-bom de vez
a manga com sal é esperança de fruta madura
o gosto de terra
a luta em conserva.
Pós
Os símbolos erram perdidos
de seu próprio fundo;
já não são o que não eram antes:
o mundo.
Identidad
A M E R I C A
N U E S T R A M E R I C A N O S S A
N O S S A M E R I C A M U E S T R A
O U T R A M E R I C A
Y O
A M E R I C A
M I S M A M E R I C A M E S M A
A L T E R A M E R I C A M A T E R
A L T E R A M E R I C A N O S
H O Y
Poem to Talloires
Green
only that green
vert
blue
only that lake
bleu
here and everywhere
water, fire, air
mountain and man
blue, happy, red as beginning
green
let’s start again
Gênesis
Mancha
Ponto
Luz
Fertilidade
Multiplicação de formas
outras que a mesma
forma outras formas
a mesma
Concha espacial
útero
matriz de cores puras
quentes como o acaso
depois de acontecido o frio
da surpresa
Um e nus
simultâneos de diferenças
singularidades comuns
comunidade de símbolos
solidão de múltiplos
multiplicidade solidária
Gênese
geração
gerúndio
A matéria em si:
pura ilusão da relatividade
de formas formando formas
Pragmatismo estético
A disciplina é quase tudo
menos o dia-a dia
o poema é quase nada
mais a inspiração
na falta solidária do mesmo quase
faz-se o poema
vive a poesia
Teoria e prática
Una
a linguagem nos seus modos completos
desentende-se com os sentidos
e forma seus idioletos
Verdades
O fato é que o tempo
embora linear
se repete em círculos
se é de fato assim
que o circo pode desenhar o tempo.
Epitáfio
Dizia-se feliz por não saber a data de sua morte
(era feliz por não sabê-lo).
Fez, contudo, preparativos de espera:
o terreno, o jazigo espaçoso, o mármore, a imagem da
ovelha
de Cristo
como fora sempre um atento e humilde servidor,
a coroa, o olhar da paixão, as chagas dos pés,
os cortes nas mãos.
Preparou-se, enfim, como quem nada quer,
acertou contas, débitos, créditos, investimentos,
não faltou um momento em sobriedade,
não transferiu dor, apreensão, ódio, ressentimento,
fingiu consistentemente ser igual a si próprio
no bom, no ruim, no calmo, na ansiedade.
Um dia vieram-lhe fantasias de antecipação,
desejou anêmonas, árvores, fungos e sombras
generosas de abrigo,
em vez do leito solitário na floresta dos homens
esquecida
o poeta fez o apelo solitário da infância, das águas
do mundo
dos símbolos
da renovação da vida.
Nunca soube quem morreria antes
a felicidade, o poeta, a tristeza de ser feliz.
Apenas por obstinada teimosia de organização
mandou talhar em pedra o poema do aprendiz:
Quem sabe sabe
quem não sabe
se sacode
eu queria casar com a Jurema
mas alguém disse não pode.
Eu quero é ficar sozinho
no meio de muito amor
Viva o estandarte da vida!
Viva a morte sem dor!
Natureza-morta
Águas de março paineiras de abril frutos da estação
a estrada de ferro Mojiana passava por Sales Oliveira
hoje já não passa não
maçãs de Paul Cézanne Manuel Bandeira
John Cheever no mundo das maçãs
vinhas da ira
a casa de meu avô única no seu pé de abiu
manga de vez com sal-esperança de fruta madura
pêras de Lô Borges Fernando Brandt Milton Nascimento
e as minhas que viram pedra ao recascar a luta
jabuticabas carambolas salas quadros frondes de
tamarineiros
toalhas bordadas de frutas fotos de fruteiras famílias
jantares de imitações
laranjas e bananeiras bananas e laranjas
o poeta Casimiro o terno de casimira
os maios de Santa Rita
estações de rio acima
nas praças de São Paulo e Minas
nas trilhas de guerra e paz
Herói
Eu só me perco por um descuido dos deuses.
Como os deuses cochilam na eternidade,
certamente me perderei.
1926
Foge de mim
a ilusão do outro
quando me escapa
sobra-me o outro
na ilusão de mim
Sabedoria infantil
Para falar a verdade,
esta cheia de meandros, meios, caminhos, pântanos,
voltas e volteios,
a verdade, enfim, que conhecemos clara
como se vista através de um biombo disfarçando
intimidades.
Para falar a verdade
nua, crua, transparente e limpa
nada mais próprio que um sonho de menina.
Replicantes
Era ele a criatura de quem sempre ouvira falar nos sonhos
faladores,
um homem tão misterioso, disfarçado e vago
que tudo o que era, era só o que aparentava ser.
Alguém feito ? se é que este passado verbo pode aplicar-ser
de fato à sua constituição ?
de um dizer mais seu,
feito, pois, na falta de melhor clareza
e na esperança de evitar ofensa pela insistência na
repetição,
do movimento pendular do outro na direção do eu.
Um homem – talvez não seja este o termo mais adequado
para expressar-lhe a estranha humanidade –
de quem não é mentira dizer que tivesse a constante
veleidade
de ser sempre mais do que se sentia sendo
embora, na verdade, não pudesse chegar sequer à metade
do sonho em que vinha vivendo.
Era muitas coisas, não na substância densa do corpo e dos
miasmas,
na forma sim de muitas alterações provocadas por alteridades
ao acaso;
um vento, uma lembrança, uma promessa torpe, uma
ameça honesta, um vaso,
e ei-lo como cobra-cega, criatura de Borges, anfisbena,
com o movimento contido em duas direções opostas:
a que vai para o norte na coragem da alegria que lhe
resta,
a que sai para a noite na voragem escrita de sua pena.
Criatura de existência negada nos compêndios,
a mudança persistente levou-o muitas vezes além,
a classificar-se antes entre os animais que não existem
do que entre as formas utópicas que quase soem estar
aquém.
Carregou, convicto, o estigma da referência negativa,
dubiedade decorrente de ser, nessas ocasiões,
um ser inteiriço, totalmente estruturado na dialética do
sem:
sem embaixo, sem em cima, sem na frente, sem atrás,
sem esquerda, sem direita, sem centro, sem periferia,
negado, pois, pela lógica dos binarismos constritores,
não por ser imóvel, sendo simultâneo em direções opostas,
mas sobretudo por ser notável a contrariedade de ser
com extremidades ambiguamente ambas anteriores.
Nome não tinha, embora resmungasse num latim bárbaro
extensas listas monótonas como novenas de criminosos
maus,
ora fantásticas, ora taxinômicas pela fantasia;
por redundância de sons, aliterações, metáforas, paronomásias,
soavam como rimas de bigorna batendo cadencialmente
a escansão do caos.
Era um ser interessado, porque inexistente de população,
não habitava o céu, a terra, o sol, o mar, a lua,
nenhuma realidade vizinha, contínua ou desconexa, pasto
ou areal,
nenhum beco, apartamento, casa, cortiço, barraco, rua,
fazia exercícios de virtudes em contrariedades,
era virtuoso e penitente em contradições,
nenhum texto sagrado, profano, erótico, poesia, prosa,
verso, estante,
livro aberto, gastura,
nenhuma realidade ilusória, nenhuma ilusão do real.
Às vezes, por descuido, por galhofa, ou por penúria,
vivia entre os homens caçadores,
vestia-se de preto, de cavalo branco na tela do cinema,
de armadura de couro, corria habilidoso trancado em si
no pastoreio de securas.
Hoje sei que continua a cavalgar as falas dos sonhos
predadores,
excede o ritmo, o andamento, o verso a música sem
metro,
falta-lhe o movimento andante do eu na direção do outro.
Tambores
Josefina escreveu para o amante:
“Volte logo,
meu marido é um…” (dúvida na leitura)
Impossível ser grafólogo
porque a letra vacilava.
O outro que estava distante
não sabia se o amigo que agora de longe enganava
era infante ou era infame.
Nova freudiana
A TV para quem
tem fome:
– Desliga-me,
ou me consome.
Heresia
A morte como ronda de surpresas inadiáveis,
a vida como terra contra as águas de erosões,
na margem estão de acordo os répteis e as aves,
o pó e o fluido, o eterno e o vago, o árduo e a imagem:
viver, embora perigoso, é sol idólatra de ilusões.
Dias de paz
Para a paz, pois, também o pai.
Não a pá, o pó, a cal, a paz dos cemitérios.
É um som, como quero, um solo em solidão uníssono
para a paz ativa, esta utopia, este lugar-nenhum
posto no passado,tenso no presente, denso
na memória.
Fios que se cruzam, separam, se encontram,
não se encontram mais;
linha também de nós: eu, você, o ancião-menino.
Eu de ser seu filho, ter perdido o amigo,
só, ter ficado pai.
Morfologia do conto
Uma relação
feita de claros dias
de trabalho
e noites vazias
de solidão
A menina e a nuvem
para Daisy
Como espantar nuvens de promessas,
não essas que a gente fica criança olhando no telhado da
garagem,
tampouco as nuvens que são chamas escuras de ameaças,
aquelas sim, também as outras, que a gente coça nos olhos
de viagem?
Como recortar com os dedos o origami da imaginação,
a dobradura do monstro identificado sem identidade,
o gato félix, a montanha baixa, a baixa do sapateiro,
o coqueiro que dá coco, o planalto dos sentimentos, a vida
feliz, o cão?
Como plantar roseiras que crescem tudo a que tem direito
o armazém da terra,
rosas inclusive, lembranças fofas, vermelhas rosas,
espinhais pontudos,
não crescem o pai que as plantou com as mãos,
embora sejam, como em vaso mudo de mudas plantas que
falam tudo,
a espada e o escudo, a escada e a hera da solidão?
Como estar ali na janela, com o pescoço na guilhotina,
contar pessoas como carneiros cortam sonhos em
anedotas e nada
o sono que não vem, lendo gibis de botas,
cresce sinistro o alfaiate a moldar direito
o terno que me incumbe a nuvem da derrota,
a roupa de domingo,
que me passeia sério e tonto na boba adequação de ser
certeiro, tataranho e ébrio?
Ser correto e composto ao cruzar as portas dos aniversários,
o mesmo quadro geométrico define apenas o atentado do
glacê de bolo;
atesta ser de transparente linha
a cruz da igreja, a prefeitura, o largo, a praça da matriz
o alvo, o dardo, a vida da cidade
socializada e pronta para o exercício prático
de estar, de um lado, solidária, de outro, sempre estar
sozinha.
Sei que aos olhos cabe ver o que vê o tato,
embora cegos e poetas só contornem dedos,
dedilham sombras num piano bêbado,
sentem a luz como um volume sob a noite densa de buracos
saldos,
onde habitam o monstro e a mocinha,
os mesmos dois que, sendo diferentes, divergem na plena
coincidência
de serem um, ou melhor dito, são um do outro, são um
de dois,
e por serem ambos cristalizam a idade milenar da guerra,
camadas caras de geopaciência,
cada camada depura o pó do tempo, que é pós depois.
Todas as canções inutilmente põem no colo a infância da
coragem,
não como a menina séria que coleciona nuvens no telhado
dos sonhos,
nos sonhos de telhagem,
é só como ter tudo e ser infante sempre,
guardar anal e anualmente o livro-ponto do comparecimento,
aparecer nas ilhas como um continente,
ser conteúdo e forma como a alegria ou como um lamento,
ser pirata, enfim, vampiro, sanguinário ao navegar a língua
no doce em calda da pilhagem.
Nas gavetas do cofre, o menino dos recados:
colecionar as fotos, os selos, as figurinhas, os maços de
cigarros,
guardar nas mãos o estremecimento gozo da primeira e
fundamental punheta,
ser o vaso, a flor, o móvel que os sustenta,
sustentar a dor imóvel e mole como um planeta.
Como, então, recortar direito, se o tesouro é serra,
a montanha é mar, água complexa de si mesmo e terras,
que submergem lembranças,
lembrar que o tempo é solidez e líquido,
é barco iníquo tripulado de bandidos,
é bando aéreo de água insana embarcada em ar?
Os meus desenhos reescrevem a caligrafia da primeira
assinatura,
têm pose de bonés que acenam de palanques,
duram o segundo em que se plantam os moirões da alma,
são velhas damas com máscaras de debutantes,
assinam em branco os cheques pré-datados da dúvida,
conservadores e dúbios como estátuas de flagrantes,
vivem sozinhos, revolucionários, torpes e dignos como
prumos,
mordem revoltas e investidas com os dentes da calma,
são covardes e audazes como soldados de chumbo.
Como expor no corpo os ossos do ofício,
como estancar a água que é constante arte,
artifício de esconder do tempo a engenharia retórica que
lhe é própria,
próprio do tempo que ao fingir ser morto mata no outro
o espelho e o brilho?
Espantar nuvens como moleques, passarinhos,
acumular ninhos de algodão como se fossem cúmulos,
sem estilingues, pedradas, só com o gesto de espreguiçar
a pontaria:
mirar na vida, raspar na sorte, acertar em túmulos.
Fórmula forma
O arco pódio
a ágora do desterro
o tempo em estado sólido
a vida a cada dia novo pleito:
eu você a terra: aceiro
o fogo o véu a mágoa: um erro