Ilhas Brasil
Ateliê Editorial, 2002
Painel
O homem, o indivíduo, a espécie, a pessoa
suas máscaras, a célula
o mesmo, o outro, o movimento, o pouso
e tudo que não cabe nessas categorias
por conhecimento
a vida
por diversa
cumpre em uníssono o vôo da libélula
e o ensurdecedor silêncio do repouso
Ultrarrealismo
A vida
limita
a arte.
Anagramas
Tenho minha vida rodeada de Anas:
A primeira feita de mar maria Marianna;
A segunda, de ar, fogo, águas doces,
Ana só, solo de vinda e ida,
Ana alegria, Ana tristeza, Ana saudade, Aninha;
A terceira, cheia de graça, clara morena,
Filha serena de mares serenos,
Chegou agora de Marianna, aqui de casa,
Cheia de história,
Ana de novo, Ana pequena, Ana envolvente,
Ana que temos, que já é linda, que será rara,
Que é de si própria,
Ana com o pai, Ana com a mãe, Ana com a gente,
Ana com Ana com Marianna: Ana Clara.
Lavradio
Pão amanhecido
comido
outra vez comido
amanhecido
duro
como a ausência de farinhas
em moinhos abandonados.
Recursivo
Por pouco muito pouco mesmo
não nos encontramos no natal
que juntos passaremos juntos
na sala de presentes
os amigos familiares os estranhos próximos
aqueles que foram
mas que voltam
com os ausentes.
Dez aforismos para descartar no milênio
I
Furo bom é o que não
deixa vazar nada
antes da matéria
publicada.
II
O que a imprensa diz
de original num dia,
dia seguinte vira
sabedoria, no terceiro
vai com a água
o bebê e a bacia.
III
Não se fie nas grandes
revelações em geral
os fatos são modestos,
corriqueiros, banais;
o editor os veste de
espetáculo, o leitor consome
o inusitado para ir contra a
corrente nada mais.
IV
Se o cachorro morder
o homem, trivial;
se o homem morder
o cachorro, notícia.
Se o cachorro morder
o cachorro e o homem
o homem, malícia!
V
Contra a mordaça
liberdade de impressão.
VI
Caminha psicografado
por Monteiro Lobato,
psicografado
pela mídia/imprensa,
psicografada
pelo sertanejo – country:
Brasil, plantando dá,
não plantando, dão.
VII
Na falta do fato,
a versão;
na falta da versão
o fato;
na falta dos dois,
a falta.
VIII
Apoiado na coluna
dos editoriais,
o leitor fotografa-se
para a posteridade
do dia seguinte.
IX
Um pouco de enredo
não faz mal à notícia;
se o fato é parco de
veracidade, vista-o de
verdade fictícia.
X
Carta ao leitor:
decifra-me,
ou nos devoram.
Alegoria
Quem foi rei
nunca perde
a realidade.
Cacofonia social
Com a globalização
dá-se dos pobres
a exclusão
acima dos médios
a inclusão
e destes – se ricos –
a reclusão.
Ensaio sobre o dom
Pelos olhos da exatidão
perdeu-se o que era dádiva.
Nouvelle Vague
Se me telefonarem
não diga que não estou
para atender.
Chame-me
depois de desligar
e me deixe ouvir
o bip contínuo da ausência
de não sei quem chamou.
Munição
Quebrar pedra-palavras
com a marreta
da música
bate-estaca
moer a síntese
para fazer embutidos
de violência.
Eco-diálogos
Como aprofundar conselhos?
Pelos, pelos, pelos!
Como conseguir a volta?
Toca, toca, toca!
Como revirar o oco?
Pouco, pouco, pouco!
Como suspender o pêndulo?
Êmulo, êmulo, êmulo!
Como dirimir as dúvidas?
Uvas, uvas, uvas!
Como costurar o vácuo?
Árduo, árduo, árduo!
Como triturar a mágoa?
Água, água, água!
Como cozinhar o tempo?
Lento, lento, lento!
Milênio
Passa 2000
passam dois mil e mais
no passatempo do passa-passa
passa quem passa e quem fica
passa só quem não passa quem
não fica atrás.
Troubadour
Poète
où se trouve
ta poésie?
− Cachée
dans ses thémes,
dure comme porcelaine de Chine,
brisée en soie fine,
elle est perdue en soi-même.
Paris
Musée Rodin
Brejo das almas
O passado não é virtual,
não tem segunda via,
é maduro de indiferença
salvo no lero-lero da prosa
e na vertigem mentirosa da poesia.
Aí sim é sempre igual:
Ainda bem, cantam os sapos no alagado,
e outros, no raso seco da monotonia,
ainda mal, ainda mal, ainda mal.
A não ser nas fotos retocadas por Stalin,
como aquela em que Trotsky some
do palanque de Lenin, ou esta outra em
que o acompanhante é tragado pela paisagem aquática
do cenário e desaparece.
Diz-se, assim, que Stalin reinventava o
passado, por impropriedade, é claro do
dizer melhor seria que ele
inventava o passado simplesmente
porque o passado não pode ser inventado.
Anfitriã
Não se decepcione:
a vida o convidará
para outros fracassos.
Dez fotogramas para passar com o milênio
Ambiguidade
Quando a imprensa
se atrapalha
não falha
o juiz de plantão
braço erguido
em riste acusa
o povo
por opinião.
Ditado
Quem conta
um conto
aumenta
um ponto
se a imprensa para
o conto cala
e contraponto.
Círculo virtuoso
A CPI alimenta a imprensa
que alimenta a CPI
que se alimenta da imprensa
que aumenta a CPI
que se lamenta da imprensa.
Copa da França
Na CPI do futebol
querem encontrar a razão
do amarelo da bandeira
não estar só na camisa
mas também no coração.
Boleiros
Jogada de mestre
dos que jogavam sem mestre
nos jogos de nunca mais
hoje pelada é a bola
que de vergonha se esconde
dos pés dos profissionais.
T.V. Notícias
Não se impressione
com o fato
tampouco o acontecimento
preste atenção no diálogo
da imagem com o movimento.
Jogos de empate
Perdido no mar de dados
o leitor quer evitar o azar
no lance do diferente
navega de par em par.
Prêt-à-porter
Na retórica do distinto
a imprensa é tal e qual
chove não molha se chove
seca se molha a moral.
Premiação
Num gesto prestidigitado
a imprensa antecipa-se aos fatos
traz furos de reportagem
e prestigia os boatos.
Alerta mínimo
Entre missões distinguidas
da mídia da imprensa
repensa:
está o que não é delas
mas só do leitor de base
o que lê nas entrelinhas
das imagens de janelas
abertas
entre o excesso e o quase.
Auto-ajuda
Num mundo cheio de solidariedades perigosas
é melhor não andar sozinho
com quem?
Cantos
A natureza em si, ou a natureza
para a consciência que se tem dela,
O movimento na substância das coisas,
As coisas no movimento substantivo das formas,
As formas da consciência na percepção do fenômeno observável,
O observador como parte da observação, no observado,
O conhecimento aos saltos
luminosos de massas e energias indesnudáveis,
Mas nuas no experimento fundador,
A orquestração de fórmulas perfeitas, acabadas, consistentes,
Belas em sua verdade abstratamente imperativa,
Sensivelmente intangível, empiricamente indemonstrável,
Dualidade de mundos, multiplicação de universos,
Dobraduras do tempo e do espaço,
Rugas infinitas do espaço-tempo!
Ilha Brasil
Quando descoberto
no atacado,
o Brasil avulso
já estava nu
com diversidade.
Vestidos pelo descobrimento,
seus habitantes
que por aqui viviam,
os que antes vieram,
durante, depois e já
mais
os que nasceram desse intercurso
rasgaram na avenida
a fantasia
da igualdade.
Hiléia
De água
mata
ferida
verde sangra
a fragilidade
imponente
da Amazônia
Data show
A felicidade perdida
no turbilhão silencioso
dos dias sem festa.
Passarinho
Como uma casa futurista
só lados
retaguarda
e a frente
a perder de vista.
Viaggio
Fuso
difuso
confuso
refúgio.
Paris
Musée Rodin
Super-homem
A vida pode continuar
sem mim
a vida.
Univocidade
O Brasil
é o primeiro país brasileiro
é também único
nas desigualdades e diferenças
com os que não existem
entre si
e ele mesmo.
Circo virtuoso
A vida tem muitos lados
o pior de todos é o de lá.
Desenvolvimento sustentável
A poluição dos rios
dos campos
dos mares
das florestas
dos areais
desérticos
é pouca
perto da higienização
da alma consumista e branda
do novo homem
deste novo renascimento
cuja universalidade da máquina
despolui, se não o ser, a sua imagem
dos detritos de sua humanidade.
Três aforismos para o privado público
I
A imprensa observa
acordada
vinte e quatro horas
e cria
os acontecimentos observados
na vigésima quinta hora
do dia
II
Pública no que presta
a imprensa é privada
quando empresta
III
O cidadão privado
de seu direito público
é como a imprensa privada
de seu serviço público
Desequilíbrio
Eu confio na humanidade,
mas ela não confia em mim.
Grandeza política
Leal
como a chama incandescente
de um palito de fósforo.
Media watching
para Alberto Dines
Registre-se para uso
devido: o mundo
difuso
porque difundido.
Plano de saúde
Trezentos e sessenta e cinco dias
de inferno
gratuito.
Poeminha do burrinho esquecido
Era uma vez um burrinho
esquecido como um burro grande
não esquecido, de sozinho, pelos outros
só esquecido, às vezes dos outros
como um elefante
que esquecido de quem é, pela retórica,
corre reto em construtiva fúria
e nada vê mais que a obsessão
de não ser ele mesmo, nem o rato que o amedronta
e querer, por força de fazer, fazer, fazer,
ser elefante-burro ou burro-elefante,
assim como um calendário que não registra datas,
um calendário em branco, um banco de dados esquecido
um burrinho burro grande, um branco de memória.
Vinícius revisitado
O amor dura
enquanto duro.
Clima-tempo
Humildade relativa do ar:
baixa.
Inconcluso
O poema
ovo
sem pena.
Amor e ódio
Quem se envolve
não desenvolve.
Relativismo global
Há em Calecut
uma verdade
chinesa
que diz não
haver três verdades:
a minha
a sua
a verdadeira
a de ninguém.
Bifronte
A vida
cheia de descalços e per
das quais se corre
no encalço
Credo
A ciência feita de certezas que
iludem as certezas
dos incertos
de que a tecnologia do conhecimento da ciência
da riqueza
produza a inovação da tecnologia
da certeza
de que a riqueza do conhecimento leve
um dia ao conhecimento indistinto
da riqueza.
Cancioneiro do tempo
I
Eta vida dura
doce
que nem rapadura.
II
Tata
pacu
co’a tia
não.
III
Não o amor
em si
só
o amor em
dó.
IV
Quem parte leva saudades
quem fica em saudades mora
ficar é mover cidades
partir é não ir embora.
V
Para o percurso:
longo;
no transcurso:
lento;
transcorrido:
passou num átimo.
VI
C’est dure
Pourvu que ça dure!
VII
Num jornal antigo
da capital
lia-se com zelo
no interior
a previsão do tempo
transcorrido e mau
e era novidade para o leitor.
Biosferas
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
não sendo uma coisa nem outra
é coisa de lobisomem.
Inominável
Em 1954
O Infanto-Juvenil do Bauru Atlético Clube
o BAC
não sei se teve essa escalação
mas teve a fotografia – essa que aí está
girando no sentido horário da lembrança
em pé, agachados, da esquerda para a direita
Osmar Grilo Paçoca Zoel Aniel Esquerdinha
Maninho Miro Pérsio Armando
constelação de promessas em torno do vazio
da estrela negra que para sempre brilhou.
Aula de analogia
A diferença de
pé de vento
com
pé de meia
pé de ouvido
pé de laranja lima
pé de pato
pé de atleta
pé de anjo
pé de cabra
homem com lobo
com lobo do homem?
Paradoxo
O homem não crê
na humanidade
do homem.
Máximas mínimas
I
Os cientistas contemporâneos
estão
redescobrindo a linguagem
analógica
por analogia
muitos continuam
apenas digitais.
II
A vida é um teatro
os papéis
além de mal distribuídos
não são impressos
mas virtuais.
III
Sempre que não há dinheiro
há alguém que nos quer tirá-lo
a mais
sempre que há angústia e medo
há alguém que nos quer aumentá-los
com zelo
sempre que há fome e sede
há alguém que nos quer
diligente
caçar.
IV
Se o temor do péssimo pode
curar o pior
o pior curado
não pode
temer o melhor.
V
Estamos diante da nova ciência
como estiveram diante da velha
positivista
nossos ancestrais:
deslumbrados e aflitos
VI
O princípio da realidade
insiste em nos alertar
em nos dissuadir da insistência
em bater às portas do paraíso:
surdas e etéreas.
VII
Roubamos aos deuses o fogo
eterno
de nossa provisoriedade.
VIII
O homem é um ser
social mesmo
que para isso precise
destruir a sociedade
que lhe dá razão
de ser.
IX
O homem nasce naturalmente
bom ou virtuosamente
mau
a sociedade o torna
virtualmente
ubíquo.
X
A imagem substitui
o texto mas
não tem
como contar-se
sem contexto.