Geração
Brasiliense, 1985
Advertência
Cuidado, leitor!
Ao dobrar está página,
nada tema: o poeta
é só um sonho do poema.
O poeta é um sonhador
Ontem
mais precisamente nesta madrugada
tive um sonho como um fotograma
vi um poema do começo ao meio e fim
completar-se diante de meus olhos adormecidos e
[atentos
instantâneo de simultaneidades
era um poema acabado inteiro fantástico
montagem de inversões conceituais inusitadas
armando o belo paradoxo que o fechava
tão inesperado quanto simples e correta a sua linguagem
sonhei depois que me acordara
do sonho do poema
quase nada retinha na memória
que sonhada
fugia de esquecer-se estranha num cubículo
mesmo assim tive a vaga impressão de que no texto
[corria
a mobilidade dos corpos na terra
o giro da terra no tempo
o tempo fluindo estático no poema
tudo pouco claro e sugerido muito mais mostrado do
[que dito
não sei por que sinal ali implícito
lembrou-me o nome Galileu para o seu título
tinha entretanto perdido o achado
abatido pela fuga do poema sonhei que adormeci
[novamente
e novamente sonhei com o poema
nele havia agora uns motivos de juventude e outros
[encantamentos sociais
que não estavam – segundo o sonho – no primeiro
dessa vez fui mais profissional nas diligências da ilusão
sonhei que ao despertar fui procurar um lápis e umas
[pílulas
na falta de papel contentei-me com umas etiquetas de
[supermercado
picotadas e pequenas como selos escuras e sem brancos
aí anotei o poema que não me escapou nem sequer pelas
[vírgulas
adormeci feliz tendo ao lado da cama sobre o
[criado-mudo
o troféu de meus combates com o sono com as formas
[com a noite com os temas
lá estava enfim domesticado e vivo o poema dos meus
[sonhos
de manhã quando acordei tinha esquecido todos os
[poemas
Memória do moderno
A poesia precisou que o poema depusesse os paramentos
[das imagens
para que o poeta tentasse a cada lance a grande aventura
[da linguagem
Soneto da consumação
Escândalo de verde em folhas de verão
a página escrita mal traduz essa orgia
mas pálidas de amor as pétalas se vão
requebrar ao vento a mesma idiossincrasia
nada distingue mais o sufoco embrião
busca formas áridas sem caligrafia
rasga cotidianos versos pelo chão
a noite é quente a terra morna a vida fria
tantas coisas novas é preciso aprender
antes que o tempo enrugue seu desdobramento:
arcos de unhas velhas cortadas sem prazer
aqui sou comensal e às vezes que me sento
transmudo meu corpo alheio ao que deve ser
no sonho alienado de ter sido sendo
Rápida entrevista com Lênin em 1985
– Qual a sua verdadeira nacionalidade?
– Agora?
– …
– Bem! Acho que internacional-nefelibata
À provençal
Sou enfim o vencedor
também sou quem hei perdido
pois a glória de vencer
é de amar e ser vencido
Fragmento de uma carta de amor
FRAGMENTO DE UMA CARTA DE AMOR
CONFESSADO, DEPOIS DO FIM, AO DESCONHECIDO
AMIGO.
ESTE, TENDO ACOMPANHADO, FIEL E SOLÍCITO, A
AVENTURA DO NARRADOR-AMANTE, INCENDEIA A
COMPREENSÃO NAS CHAMAS QUE ATEIA AO
PAPEL.
DESTE SALVA-SE (OU PERDE-SE) A PEQUENA
PONTA QUE O IMPETUOSO VENTO FRIO DA MADRUGADA
ROUBA, PELA JANELA ENTREABERTA, AO DISCRETO
ESPANTO E SILENCIOSA MÁGOA DO
CONFESSOR.
ATIRADO NO REMOINHO DA SORTE, AGITADO PELO
VENDAVAL DO DESTINO, COLA-SE NO CASACO
DESBOTADO E PUÍDO DO NOTURNO
PEREGRINO.
M DE MERCÚRIO, NOSFERATU DO ACASO,
CARREGA NAS COSTAS COMO UM FARDO-ESTIGMA
O ESTIGMA PESADO DE QUEM ERROU POR OUTRO,
INOCENTE.
VICÁRIO DE MUITO AMOR E PLENO DE ABSTINÊNCIA
ESPALHA, ENTRE FANTASMAS CONSUMIDORES
DE TÉDIO A PUBLICIDADE INÚTIL,
ESTILHAÇADAMENTE BREVE DE UMA
ESPERANÇA.
do outro lado
intimidade
nada
máscara
vertigem
A rosa do nome
Uma rosa é uma rosa
é uma rosa
é uma rosa
é uma rosa.
Ainda assim,
um nome.
Poetas românticos
Álvares tem no seu nome
a chave da rima
e um segredo
Mário de Andrade
– chaveiro exímio – hábil trocista –
houve por bem trocar
o amor e o medo do meigo e doce Casimiro
pela dura (e falsa) fortaleza crítica do medo de amar
A esfinge e o computador
Recifra-me
ou
me ignoram
O computador e a esfinge
Recicla
ou
Freud explica
Marinha
Deste navio só o que se avista
a boca
estende tetos e a moldura espanta
a viagem roda o conceito rouco
repete lâminas de cegar as plantas
A novidade ao entrar no quarto
não minha mãe não me some deixe
correr a mágoa da expressão de parto
a cabeça triste de um infinito peixe
Exercício (inútil) de falácia escolástica
A conhecida teoria da suposição dos termos
– conhecida por sábios santos filósofos lógicos
[doutores
por loucos místicos da realidade pronta
por gramáticos aptos a decantar as regras
que fazem da linguagem o espelho da exceção –
a teoria da suposição dos termos, como dizia,
ou ainda em bom latim cantado em monastérios,
a gorda ontologia da suppositio terminorum
supõe (erradamente) na interpretação moderna
a terminação medieval da teoria da suposição;
ao contrário, no entanto, da farsa e da impostura
a formação da categoria de todas as categorias
hipostasiada no delírio discreto de todos os mistérios
consistente nos imperativos sintáticos que negam os
[sentidos
uma vez impostos os termos da suposição
implica a suposta verdade da teoria da suposição dos
[termos
que longe de terminada como supõem os tolos
tolera a veemência retórica do princípio da
[ex-terminação
Num guardanapo
O movimento do homem
tende infinitamente
para o finito
Os caçadores de vagalumes
para J.C. Valadão de Mattos, amigo das lembranças.
Eu nunca cacei cometas,
nunca nenhum saci cavalgou na garupa dos cavalos em que nunca viajei,
jamais dobrei a noite das esquinas de Sales Oliveira, sem que tivesse medo de topar
com a ausência brusca da cabeça escura da mula-sem-cabeça.
Eu fui, isso sim, um grande caçador de vagalumes,
com vidros cheios de lanternas vivas, iscas de tiques e estalos de pescoço,
com tições em brasa riscando a escuridão do Triângulo,
que abastecia de lenha as máquinas da Mogiana.
Ali, onde meu pai, menino, jura ter visto aparições temíveis,
vi apenas o meu e o medo de outros meninos com medo das aparições.
Mas o cometa Halley, este sim, eu vi, quando era menino,
cortar de silêncio e espetáculo o poente do céu da infância de meu velho pai;
vi também muitas outras coisas com os olhos adultos e as mãos atentas de seleiro,
que cortavam o couro e teciam arreios para os colonos e fazendeiros dos cafezais,
com estes olhos e aquelas mãos que cortavam o couro e teciam enredos.
Por Sales Oliveira, passaram muitos cometas,
desses mais triviais que o tempo deixou sem uso e superstição,
cometas-vendedores, de roupas, de jóias, de supérfluos, de bijuterias,
que pousavam na pensão de Dona Itália;
mais frequentes que os do céu, mais transitórios na terra,
fortes, contudo, na regularidade e cíclicos na invenção,
cheios de histórias e fantasias, de mundos estrangeiros, de prosopopéias,
feitos não só de silêncios luminosos, mas de lâminas sonoras de persuasão.
Quando o cometa Halley aparecer de novo e meu pai tiver completos seus oitenta anos,
já não serei eu mesmo, sem ter sido outro,
não estarei em Sales, tampouco a selaria, a Mogiana, os colonos, os cafezais,
não haverá cometas, desses sem uso de compra e venda, por desusados;
juntos estaremos a olhar as terras que olham retas o risco branco que corta a noite,
a mesma noite em que, meninos, seremos velhos, perto e distantes na solidão.
A pedra, o barco e o menino
para Fausta
Era uma vez um menino que tinha na mão uma pedra
e a pedra pequena na mão do menino foi mais leve que
[o barco
maior do que a pedra menor que o menino
depois a pedra atirada no lago pela mão do menino
desapareceu nas águas que o barco cortava levando
[ligeiro
o menino, a pedra na mão e a mão do menino
que a pedra pesada no fundo das águas do lago jogou
Bolsa de valores
Amor
à (primeira ) vista
dispensa oratória
a prazo
tem juras
e correção monetária
Hino em ego à dívida eterna de um ex-terno cidadão
Sentar sem ar na praça que passa
pernas coloridas
calor da vida
coloração
coroar a cor
co-or
coração
urgente preciso
correr senão quê
se quê não consigo
não pago a TV
contemplo o riacho
e rio do aço
tietê sem andrades
noturno sem mários
horizontes sem mar
sinal de esperar
atrás do espelho
lá sim que era vida
não tinha uma dívida
nem dor no joelho
urgente preciso
correr senão paro
se paro não chego
não pago meu carro
resvalo no vale
nos ramos da praça
paris nas estátuas
se eu fosse mais jovem
viajava num boeing
vendia meu carro
largava meu posto
ganhava na loto
sonhava algo mais
esquecia das mágoas
criava um slogan
pagava meus juros
jurava ter paz
urgente preciso
correr senão nada
se nada não vôo
não compro minha casa
passeio no paço
eu passo amanhã
prefiro bem cru
receio receio
mas janto a esperança
no seio no seio
no seio do vale
do anhangabaú
Polaróide
Em 1985
– da madrugada do dia 14 de março
à noite do dia 21 de abril –
houve um singular e calvarioso eclipse do sol.
Os velhos, as crianças, as mulheres e os homens;
os políticos, os soldados, os juízes e os réus;
os patrões, os operários, os professores e os banqueiros;
os pradres, os empregados, os estudantes e os
[sem-emprego;
os camelôs, os penitentes, as famílias e os bandidos;
os ricos, os artistas, os agiotas e os otários;
os anônimos, os notórios, os que têm pão e os que têm
[fome;
o público, os poetas, os céticos e os condestáveis;
os jornais, os diaristas, as TVs e os solitários;
os situados, os opostos, os neutros e os impostos;
os que dão, os que recebem, os que guardam e os que
[servem;
todos, unânimes, chamaram este sol ocluso
Tancredo de Almeida Neves, presidente.
Depois, quando o astro apareceu de novo,
as pessoas choraram e bateram sua angústia contra os
[desígnios de Deus,
e todos ficamos atônitos com a claridade fria do sol só
[chamado sol.
Testamento
Pelas contas da memória amarradas em fios de anos
nada há de faltar no dia de meus últimos planos:
a árvore muda, o filho inédito, o livro pródigo.
Depois, a sementeira longa em cada gesto sólido
seja o princípio ou a viagem pronta,
se a terra árida, a pedra surda, o espaço código.
Fabulário analítico
para Aninha
I
O pano cercado de zelos
a tarde estendida na copa
o fio tecia o tempo
a história guardada num fuso
o fuso aguardando uma roca
II
era uma vez um pescador cansado de nada pescar
(no pano riscado brotava o amarelo)
pobre e com três filhos à beira do rio sonhou
(o verde esfriava a paisagem)
ou bem mais que um sonho era mesmo uma visão
(rosa vermelha em destaque)
lá estava a morte pescando lá na ribeira de lá
(no meio das margaridas)
quando a morte peixe pesca
(abelhas gordas de dor)
imagine a fome que há
III
pequeno pleno de medo
preso no fio que tecia
solto no embalo da voz
na mão da irmã que bordava
a vida carente de atos
num rio cheio de nós
IV
guardada no morro
atrás do horizonte
maria escondeu
a dor e a ponte
do rio areava
a cor do garimpo
que limpo limpava
os pés do menino
a água sem fonte
sem barco sem ouro
perdeu sua ponte
no alto do morro
maria pousada
recreio das águas
de longe o garimpo
areia as mágoas
olhar o menino
e ver a donzela
pender-se do morro
atrás da janela
moldura de branco
prisão de seu corpo
que os olhos saltavam
vivendo no porto
por ter os cabelos
cravados na terra
maria dizia
perdão a quem erra
nas águas do rio
ninguém se responde
os homens trabalham
garimpam a ponte
V
a mão que contava ligeira
castelos de linha de cor
cortava a sombra da tarde
em riscos de pormenor
VI
tamanho era o amor da princesa
tão grande como dedais
nele cabiam assombros
gigantes contos de duplos
de infernos e catedrais
VII
mariana circundava
o versado mas não ia
respirava o respirado
mariana era Maria
tempo longo se nas águas
continência desta esfera
o fluir já se contava
esperando quem se espera
mar sonhando-se deserto
ensinou-se desde o fundo
que o distante é tão mais perto
se no mar começa o mundo
e maria veio à praia
navegante em céu de estrelas
chão que a noite a mão espalha
guarda sol em seus cabelos
no circundo de seus olhos
mariém ou água em chama
vêm do rio pescadores
mar e porto mariana
mas nos olhos se o mar ia
mar em noite mar em si
mariana mais que em via
mar maria amar mari
VIII
uma tarde sentado
na soleira da porta
repetiam-se histórias
de conquistas e glórias
o horizonte era úmido
de um olhar de comportas
perguntava na boca
pelo beijo da santa
era maio e as flores
davam nó na garganta
IX
Zé Pedro homem de ficar
partia
a parte os bens
a terra o gado merecia
quando cheguei do horizonte
vim da noite carregado
na luta quieta do monte
rodei o morro encantado
Zé Pedro chegou falante
cantando o silêncio dura
durante o sono cansava
queria voltar pra serra
fugir de vida tão pura
correr no sangue do rio
subir a escarpa da guerra
dobrar a curva do frio
quando chegasse atrasado
no pronto corpo da terra
Zé Pedro tocava na noite
a ponta do porto de espera
um dia cheguei como quem
durasse por ribanceira
rodando barranco abaixo
no barco da cabeleira
queria Zé Pedro a faca
partir o rio pelo meio
deitar a noite embrulhada
no vazio de seu peito
quando Zé Pedro a lua
na boca da fome escondeu
um barco rondou a rua
o peixe no aquário morreu
X
a morte pescando peixe
(cerca marrom em ponto cheio)
é a pesca do fundo da vida
(carneiros sonolentos em ponto cruz)
riacho onde a morte pesca
(menino com botina velha na ponta do anzol)
é caminho que só tem ida
(cerca carneiros menino: aprendiz de solidão)
XI
entrou por uma
saiu por outra
a ponte quebrou
o doce caiu
a história acabou
não houve vitória
nem guerra nem paz
engasgado com chicória
continua o leva-e-traz
Do fragmento de uma carta roubada
Não estou seguro de que ainda seja possível falar de
[equilíbrios antagônicos
nem mesmo de antagonismos equilibrados
sei contudo que o silêncio de prata das esquinas vazias
funde os males guardados nas dobraduras e talhos da
[memória
com a lua de sangue dos vampiros
Suzana Flag
(com uma pitada de Roland Barthes)
Dizem que as pessoas choram duas lágrimas,
quando morrem: últimas e perfeitas.
Mas, meu Deus (D/Z)!
por que é que o doutor Ismael
– que não era anjo e era negro –
tinha que ser tão fodido nas penas de Nelson Rodrigues
– que era branco, era anjo e quis ser cruel –?
Parábola de mulher
Primeiro os homens
chuparam-lhe as consoantes do nome
depois os mesmos nomes
cegaram-lhe as vogais dos seios
no dia azado em que a morte veio
cheia de estandartes rotos e sem ânimo
para as rituais alegorias de passagem
encontrou-a muda estirada humana
o sexo seco
em meio a ventres esticados de eloquência
tudo como estava escrito
que assim convém à saciedade anônima
Evangelho
A diferença entre o Deus de justiça do Velho
[Testamento
e o de misericórdia do Novo
é o caso que teve com Nossa Senhora
e o humanizou
Samba-enredo
O centro da linguagem: só tocaias
em torno atores máscaras esperas
a águia do paraíso ao chegar em Haia
para fazer gozar a raça o seu momento histórico
chupa depressa os ovos do pavão retórico
enquanto a massa na avenida aqui nos trópicos
rebola a língua em maxixes públicos de etcéteras
A Bela e a fera
para Marianna
Quando o pobre pai – que era rico e ficou pobre –
arrancou a rosa do jardim daquele misterioso palácio,
rosa vermelha encarnada para a filha mais nova e
[querida,
a gota de sangue que há em cada poema
tingiu-lhe a mão, os espinhos que espetavam a mão,
e a mão que agarrada aos espinhos
transformava aos poucos seu braço-membro em
[braço-rosa.
Nesse instante, sem que soubesse de onde, nem como,
[nem por quê,
surgiu-lhe no peito a dor habitual dos grandes abandonos:
tinha diante de si a rosa de sangue transtornada em fera,
e a fera em solidão.
Era uma fera terrível, lamentosa de queixumes quase
[humanos,
que, às vezes, numa voz de bicho,
outras, numa voz de homem,
prometia promessas de quem tem a propriedade de ser
[bicho-homem,
e ameaçava castigos só imagináveis na imaginação de
[um homem-bicho.
O monstro-bicho, o bicho-homem, o homem-monstro e
[o monstro-fixo
trouxeram para a fera a filha mais nova e querida que era
[Bela;
as irmãs também bonitas, mas ciumentas e feias só pelos
[ciúmes,
gostaram, como muitas outras de outras histórias de
[irmãs novas e velhas,
que a delicada menina preferida dos zelos e dos
[cuidados de seu velho pai,
– antigo mercador falido por ganância no antigo
[deserto das sombras imperiais –,
gostaram, pois, como dizia, que a doce, terna e meiga
[humanidade da criança
fosse entregue à sanha e ao apetite – assim pensavam –
da fera bruta, da feroz brutalidade do ódio cego da
[estranha criatura.
Contudo, a menina que rapidamente na viagem se
[tornava em moça,
e a moça que empurrava o corpo para ser mulher
logo aprenderam que a ferocidade do monstro e a
[monstruosidade da fera
eram muito menos do que algo em si – uma essência ou
[uma substância –,
e muito mais o termo de uma relação, um ser não-ser,
[uma carência,
alguém – se dizê-lo não for contraditório –
feito não da monstruosidade da fera que de fato mostra,
mas da triste humanidade ausente do homem que não
[era.
A menina-moça, à força de querer-lhe a natureza
[fazê-la outra,
primeiro veio-lhe o reconhecimento, depois, a
[compreensão
de que o destino a pusera não só no fluxo de sua
[própria vida,
mas na vida dos símbolos que sempre andam solidários
[na alheia solidão.
No dia em que sentiu vontade de voltar à sua velha casa,
deixou-lhe a fera consentida em dramas de grandes
[perdas e sofrimentos;
as irmãs invejosas também sofreram o desalento de ver a
[bela irmã mais nova
viva, livre – assim pensavam, sem perceber-lhe a alma
[cheia de tormentos.
O pai envelhecido mais que antes pediu-lhe que ficasse,
mas ela decidida ouviu ao longe a voz com que de
[hábito a fera a chama,
a chama que da vida, da triste vida ambígua, da fera
[se acabava.
Abalada em sustos, por muito pouco não ficou em casa,
[cheia de saudades da mãe,
que não conhecera;
se ali ficasse aninhada nos segredos do pai e no ódio das
[outras filhas,
suas irmãs,
dizem que seu destino seria sempre ficar entre:
não ser menina, ser quase moça, não ser mulher.
Porém, decidida e corajosa, como dizia, e como de fato
[era feito seu caráter,
espantou-se do torpor e célere correu por serras,
[fantasias, vales e desterros:
foi sendo atriz da própria personagem,
fugiu do instante oco em que o acerto se confunde em
[erros,
fez-se narrador de seu próprio texto.
Quando chegou à terra em que seu pai quase sem querer
[desatou-lhe o nó da vida,
ao apanhar a rosa para dedicá-la à delicada filha dona
[de seus zelos,
viu, num canto do jardim, junto aos roseirais, que a
[fera, exaurida em suspiros,
soluçava fundo:
era uma figura imponente como um fero monte de
[plagas tormentosas,
era grotesco o choro deste homem-monstro sucumbindo
[em rosas.
Entre a repulsa, a piedade, o horror, o amor e o medo,
beijou-lhe a fronte que desfalecia em suores frios,
o que foi bastante para o desencanto:
tinha diante de si um belo príncipe vulgar qualquer.
Assim, acabou-se a história:
do intervalo de ser quase uma e não ser nunca outra,
a menina-moça, pela fera dúbia, pelo pai querido, pela
[mãe ausente, pelas irmãs cruéis,
transformou-se em rosa, rosa de sangue, que se fez
[mulher.
Oito e oitenta
Nem saudade
nem surpresa
saí como cheguei
uma mão na frente outra atrás
exato como nos sonhos
que os anos não trazem mais
Almoxarife
para Jonas Blau
Acumulo dias semanas meses
uns sobre os outros
mortos
como colossos adiados
Currículo mínimo
Sonho primário
Crescer para ser grande
Disciplina ginasial
Educação moral e cínica
Obrigação colegial
Disciplina cívica e oral
Conseqüência universitária
Problemas brasileiros
Farsa da lira dos quase vinte (e seis) anos
Também Clarice e outras multiplicações
A transfiguração de mim em outro
não se processa na ação
de não ser eu e de ser outro
mas de ser o eu do outro de mim
e não ser outro
íntimo de mim quando me esqueço
sou-me estrangeiro na imagem do espelho
vivo com a obstinada certeza de ser sempre visto
em troca da frustração de jamais chegar a ver-me
na voz nos sonhos na epiderme
a pessoa que em mim conheço
é loucamente diversa da que me conhece
se é noite
ela me chama carlos
se claro
eu que a chamo vogt
(simultâneos um do outro
nos chamamos então de outros tantos nomes)
sendo assim autênticos e banais em nossa diferença
convivemos relativamente confortáveis no mesmo homem
Diálogos mínimos
(Do it yourself)
Menino: Vamos ver quem juntos mija mais longe?
Menina: Prefiro quem longe gema mais perto.
Mãe: Queria tanto ser sua amiga!
Filha: Você só é filha da mãe.
Menino: Sozinho!
Padre: Que desperdício, meu filho!
Ele: É preciso ceder em alguma coisa.
Ela: Antes tarde do que cedo.
Marido: Pode tirar seu cavalo da chuva!
Mulher: Ele já está no quarto.
Marido: Vamos dar um tempo e pronto!
Mulher: Prefiro ficar sozinha aqui no meu enquanto.
A amante: Você vem?
O amado: Faz tempo que cheguei
Ela (na cama): Está limpando o tempo?
Ele (na janela): Não, estou fumando!
O amante: Você vem?
A amada: Já fui e já voltei.
Ele: De quantas você é capaz?
Ele: Depende de quem vai na frente e de quem vem
[atrás.
Patrão: O que a senhorita vai fazer à noite?
Secretária: Nada que eu não fizer de dia.
Adolescente: O primeiro amor é único, verdadeiro e
[profundo.
Divorciado: Até que vem o segundo.
Cidadão: Os bandidos vão invadir a cidade!
Xerife: É preciso antes evadi-los.
Delegado: Fique sabendo que o senhor não é
[ninguém.
Suspeito: Mas o senhor também não é todo
[mundo.
Primeiro comensal: E o tempo e o vento?
Segundo comensal: O vento levou em busca do tempo
[perdido!
Primeiro aposentado: Quanto tempo a gente leva para
[viver tranqüilo?
Segundo aposentado: O tempo de enterrar os mortos e
[de viver uns grilos.
Garção: O senhor deseja?
Velho freguês: Ter desejo outra vez!
Fumante: Você tem um cigarro aí de jeito?
Ex-fumante: Não, só tenho cigarras no peito.
Ele: Depois da tempestade, vem a bonança!
Ela: Antes também.
Primeiro sócio: Temos que pedir concordata!
Segundo sócio: Concordo.
Consenso: Todos somos como somos.
Nonsense: Todos são como não somos