Cantografia

1982
Prêmio de Revelação em Poesia, da Associação Paulista de Críticos de Arte

Cantografia
O itinerário do carteiro cartógrafo

 

 

Léxico

cantografar: empalhar sinais
cantógrafo: navegador e sereia
cantografia: o itinerário do
carteiro cartógrafo


Longe…

Longe
dia de março
de mil novecentas
amarguras


A seleção…

A seleção
brasileira não representa
o que
há de pior
mesmo no futebol


No amor…

No amor vale tudo
até mesmo
armar


Guardo…

Guardo pura
imaculada
a recordação
do meu primeiro crime
cometido
por você


O riso…

O riso é um
risco
que se apaga com o
erro


Quase…

Quase eu disse
o que
não devia
a você
a ninguém


Falamos tudo…

Falamos tudo e ainda
há o que
silenciar


A palavra…

A palavra
estala
estica
estoura
os rios se repetem


Sociedade moderna no terceiro mundo

para Roberto Schwarz

Autovacinamos
a população
contra a febre de consumo
não há antídoto

a concreta falta
de
dinheiro


Reflexão inútil

Na realidade
os generais
são
em geral
mais
realistas
que
generosos


Poeminha da aspiração confusa

para Modesto Carone

Esteja aqui
sem que a eternidade
atravanque
o vinco
impermeável
da chuva
agora é indigesto
índios
gentes
gestos
morrer na santa ceia
é vã
a glória de meus reais
desejos
mas
mandar o Pedro
foder com o João
sumir com o Zé
baixar o pau
decretar a miséria
o surto de putos
estipular o silêncio
(como norma culta)
é dose pra general

Luto

Se em março as paineiras
explodem lilás
por quem são as cores
por quem? tanto faz

navios passaram
pois bem estou pronto
não vá tão depressa
evita o encontro

no campo estirado
teu corpo no meu
olhar perfurado
da luz de vitrais

a sala a varanda
se joão ou também
o carro o navio
passou mais um trem

o carro passou
por em toda via
o quarto a janela
quem foi quem diria

o embrulho é igual
esqueça a dispensa
perdi minha chave
não faz diferença

Se João estivesse
se Pedro ou Maria
quem foi que me esquece
tecendo meu dia

o terno o discurso
ternário o compasso
as horas no pulso
do sangue de março

de águas passadas
moeram a luz
poeira das tardes
poentes de pus

atrás as paineiras
simulam vitrais
não fosse em março
tão verde o lilás

no canto da cela
estreita-se o campo
lá fora cadeias
detêm o teu pranto


Transregionalismo

Verde lago sereno sereno lado azul
lado amarelo sereno lago sereno azul
azul largo sereno amargo sereno azul
sereno morto amargo amarelo
verde amarelo azul
morto sereno
enlutado
no
cone
das
cores
sul


Soneto da liquidação

Se houvesse contas ou esperanças
Em vez de flores ocasionais
Eu saberia que enfim não danças
Como contavam meus carnavais

vês se evitasse as tuas lanças
pobre seria de dor e mais
digo que agora minhas lembranças
vão se doendo de paz e paz

ponto final não há mais chances
como se houvesse na carne a cal
eu me pergunto se então ou antes

antes que eu fosse tristeza e sal
não te perdias por mim não canses
cantando sambas no meu quintal


Lição de geometria

O que me espanta
no tempo
é
a tranqüilidade dolorosa
dos corpos
o enternecimento horizontal
do entardecer


Ateliê

Recorta a tarde
tesoura
da memória

de um lado
o ponto por ponto
cruz
da nau tecida

do outro
apagada imagem
uma dor
de agulhas

entre
a mesa posta
o travesseiro brando:
retalhos


Personagem

A tarde ela haveria de chegar
velado o risco ela haveria
de chegar

tomara a casa esteja pronta e a sala
laçada a mesa a solidão tomar
a casa

perca o juízo de quem longa espera
raspe na porta a seu convite
o rosto

fure a parede o relógio pêndulo
lute no quarto a perversão
do tempo


Soneto de ocasião

Se de lembrar não fosse tempo agora
nem de outros frutos estação aqui
se não passasse a chuva fina espora
da longa espera de esperar por ti

certo haveria acaso novidade
tardes tranquilas filas dolorosas
insinuações de amor fragilidade
torcidos homens torturadas rosas

portas de aço a solidão por dentro
riso ternura trampolim da sorte
o antigo medo a procura um centro

hoje a viagem a despedida o pranto
corta a memória aprofundando o corte
na dor insiste o velho amor e quanto

Hábitos cruzados

Alternativa flor ao terno branco
a dor é a mesma que encontrei na sala
servida em goles
como sobremesa
ao espanto inútil de te ver calada


Insônia

As horas mortas
morrem em candelabros
de pé

a sala dorme recostada
em mal
dormidas noites

a cama deita na memória
sonhos
que a deitaram

a mesa geme
o tilintar de corpos
de corpos

os copos bebem
velho sabor
rançoso

os pratos roçam
doces canções
ridículas

os doces roncam
novo saber
agrícola

a casa varre
a solidão
aos gritos

sobe lá fora a dor
intestinal
do mundo

treme a descarga
num estertor
de pranto

rola a viola
em tão plangente
surdo

os grilos metem
o dedo
na garganta

o galo crispa
seu silêncio
fundo

a luz furtiva
como
num delito

fantasmas cantam
a ressurreição
da falha

cachorros lambem
seu pesadelo
aflito

os gatos rasgam
a comunhão
da carne


Fluvial

Juntos
armamos o bote
da solidão: nele
sobrevivemos


Marinheiro Pessoa

Agora

não navega
nem tampouco vive
erra
se
escrito


Barcarola

Em barca são os homens tristes
das praias proas e o navegar
já não suspeita que a sombra voa
vem de proezas de amargo amar

por tais cortes viajava a fome
mais o lenheiro de minha dor
mesmo na árvore a tristeza dorme
rasga-se em rugas o seu rancor

ninguém na copa a sala cheia
pandas toalhas de palidez
cobrem as mesas falhas de areia
áridas sombras de cada mês

soltam-se cordas solda-se o sal
perto do salto agarra-se ao porto
trincam os mastros parte-se a nau
tranca-se à chave a ave no corpo

pela barca de lonxanias
vertem-se frutos velas e franjas
a carta rota do fim do dia
vértice em sangue mar e lembrança


Vertical

Mergulho em seu repouso
a resposta é forte
como o silêncio

mas seu olhar é curvo
pescador
de palavras ostensivas


Pássaro raro

para Berta

Não que esperasse por que a tarde veio
nem dispersava a minha angústia quando
a noite antes fora só anseio
de ter seu corpo disponível e pronto

do encantamento se passasse o encanto
pelos seus braços escrevendo eu leio
a asa quente deste vôo enquanto
a ave vibra atravessada ao meio

os pés deliram e são mãos antigas
apontam o espaço de soltar-me agora
na terra o ventre a inventar cantigas

de mar ao largo que se cala chora
a nave range no mergulho a proa
situo o vôo entre o dentro e o fora


Censo

Éramos quantos
somos: tantos
anos depois
envelhecido o canto


Metonímico

Enquanto repouso:
janelas
e quando já
nelas: cotovelos
de
lembranças


Draminha vegetal

Os jardins cultivam
esquecimento
não de
nós
mas de
desenlaces


Pensando em Cortázar

Não sei como
mas
os novelos soltaram-se
pela casa

Imagem

Quando a traição começa
o que se trai?
onde fugir às frestas
se os dedos têm
entrelinhas
e a dor de outras felicidades?
como evitar o inesperado
visitante
se dentro o espelho
se fora a vida
e seus semelhantes?


Soneto da correspondência

Escrevo a carta que não recebi
enquanto enquadro qualquer cor marinha
esquadra sombras minha mão caminha
tropeça e gira numa cicatriz

a escarpa é árdua se das uvas vinha
sabor antigo de sorriso e fria
a tarde roda pelo rastro ia
curvando o corpo do horizonte em linha

posso sensato no cabelo usar
arestas novas prepotente esquina
e as mãos caladas de aspereza amar

amarga água aguardando em cima
se aquém a casa a solidão a par
a quem a carta se a memória opina?


Poeminha esotérico

Havia um súcubo
como outros
íncubo
senão com um porém:
só era
enquanto
outros
também

Paciente: lusco-fusco

Quando a tarde recobrar o espanto de ver se a mesma
ensangüentada espora lá na certeza do sertão ser quando
perto de dentro onde dizer lá fora.


Radiografia

Primeira chapa

Quando a tarde recobrar o espanto
de ver-se a mesma ensangüentada espora
lá na certeza do sertão ser quando
perto de dentro onde dizer lá fora

Segunda chapa

Quando a tarde recobrar o espanto de ver
se a mesma ensangüentada
espora
lá na certeza do sertão
ser
quando perto de dentro
onde
dizer lá fora

Terceira chapa

Quando à tarde
recobrar o espanto e ver-se
a mesma
ensangüentada espora lá na certeza do sertão ser
quando perto
de dentro
dizer
onde
lá fora

Quarta chapa

Quando
a tarde recobrar
o espanto de ver-se
a mesma ensangüentada
espora lá
na certeza do sertão ser
quando?
perto de dentro
onde?
dizer: lá fora

Quinta chapa

Quando?
à tarde
recobrar o espanto de ver se há
mesma ensangüentada
espora lá na certeza
do sertão ser
quando
perto de dentro
onde dizê-la:
fora


Diagnóstico (precoce)

dentro

quando       recobrar
ver              ser
onde           dizer
fora


Ideologia

(Pequena peça dramática em três atos)

Primeiro ato
De suas idéias
somos todos
conscientes

Segundo ato
De suas idéias    somos todos
co-cientes

Terceiro ato
De suas idéias    |somos todos
cociente